quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

A inconstitucionalidade da PEC 241

O que está em jogo com a PEC 241 não é uma disputa entre a “responsabilidade” e a “irresponsabilidade” fiscal. A responsabilidade fiscal é um paradigma já assimilado pela Constituição de 1988 e refletido pelo sistema legal, de modo que não precisamos de uma PEC para garanti-la. Uma Presidenta foi deposta, inclusive, sob o argumento (sic!) de que teria violado tal paradigma de governança. Por tanto, se há algo de eficaz no nosso constitucionalismo, são eles os imperativos da “responsabilidade fiscal”. A PEC 241 aposta em algo muito mais radical e é justamente nesse radicalismo cínico que encontraremos a sua inconstitucionalidade.

A flagrante inconstitucionalidade da PEC 241 não estará nos orçamentos que, ano a ano, ela poderá impor. Esses orçamentos não seriam, enquanto tais, opções orçamentárias inconstitucionais apenas por estarem, por exemplo, promovendo um “arrocho” financeiro nos gastos do Governo em determinado ano. A principal causa de sua inconstitucionalidade está na limitação previa das despesas primárias em valores absolutos pelos próximos 20 anos, uma vez que o inciso primeiro do § 3º do eventual art. 102 amarra as despesas primárias de 2017 às de 2016, ao tempo em que o inciso segundo amarra as despesas primárias dos próximos exercícios ao anterior. Ou seja, na prática, a PEC 241 decide o valor absoluto das despesas primárias, bem como o critério de sua correção monetária, a partir de uma decisão política tomada e legitimada para o contexto de 2016, juridicizando as “impossibilidades” de uma determinada política econômica para contextos imprevisíveis até 2036.
Em outras palavras, a PEC 241 retira da política a possibilidade de se optar por ampliação ou redução nos gastos públicos, decisão que, dentro de alguns limites mínimos, deve se manter aberta às deliberações democráticas em um jogo que transforma, em diferentes contextos, planos político-econômicos plurianuais em leis de diretrizes orçamentárias e, por fim, em orçamentos relacionados a cada exercício financeiro. Se concebermos essas possibilidades no horizonte de um constitucionalismo dirigente clássico, a PEC 241 viola o centro das “possíveis possibilidades” de concretização de um compromisso programático cuja alteração dependeria uma nova Constituinte que, além da legitimação processual e de um contexto quase-revolucionário, tampouco poderia enfrentar a contingência econômica mediante a estipulação de limites “absolutos” nos gastos. Por outro lado, mesmo se ignorarmos esse horizonte dirigente, a PEC 241 representa a colonização da política pelo direito, impede políticas futuras e ignora o risco na sustentabilidade desses sistemas sociais. Não há caminhos possíveis para a constitucionalidade da PEC 241.

Para além da inconstitucionalidade de origem e de um regime de exceção de 20 anos que, na prática, derroga o regime constitucional de vinculação dos gastos com educação e saúde, a PEC 241 traz outras inconstitucionalidades acessórias. Por exemplo, prevê no inciso I do eventual art. 103 dos ADCTs a impossibilidade de reajustes dos servidores daqueles órgãos ou poderes que descumprirem os limites orçamentários, estabelecendo uma pena que atinge sujeitos que, em nenhum momento, poderia ter impedido a violação da norma. A PEC traz, ainda, questões curiosas que nos levam a refletir sobre as conveniências políticas que a motivam e seu caráter isonômico quando exclui, no §6º de um eventual art. 102, uma série de despesas, a exemplo da assistência financeira ao Distrito Federal para a execução de serviços públicos. Parece-nos que, ao contrário dos prejuízos no campo social, os gramados de Brasília não poderão ser afetados com a política fiscal proposta. De igual modo, a exceção aos gastos na segurança pública.

Com isso, percebe-se que a PEC 241 é, no fundo, a tentativa de imposição de um paradigma neoliberal de Estado mínimo, retirando das urnas e dos governos legitimamente eleitos a possibilidade de adoção de medidas contrárias a esse paradigma. E faz isso sem levar em consideração inúmeras variáveis que, à luz das críticas que o próprio FMI vem fazendo à eficiência das políticas de austeridade fiscal, nem mesmo a cartilha neoliberal ignora. A redução do Estado e de seus gastos, independentemente de suas receitas, é, dentre de alguns limites, uma política possível, mas que precisa ser legitimada no tempo da política, jamais na perpetuação de sua temporalidade.
A PEC 241 é a morte da política. A imposição de “uma” das políticas possíveis no presente, em boa parte incompatível com a Constituição de 1988 e que, talvez, sequer seja viável daqui a 10 ou 20 anos. Proposta pelo Governo Temer, é a eternização de um golpe através de uma regra socialmente burra, inteligente apenas para a elevação do superávit primário. É a tentativa de impor um projeto que, além de nunca ter sido aprovado pelas urnas, pretende retirar delas a “possibilidade” de “políticas possíveis”.

Wálber Araujo Carneiro

Professor Adjunto da Universidade Federal da Bahia

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Microfonia democrática, repressão e o silêncio eloquente dos governantes

No último post – escrito antes das manifestações em massa que ocorreram ao longo da semana – falava de uma microfonia democrática. As diferentes faces de uma democracia que se revelava nas ruas através da histeria decorrente de boatos sobre o fim da bolsa família, mantendo-se a falta de percepção do caráter assistencialista e populista que cerca a medida; da vaia da classe média à Presidente na abertura da Copa das Confederações, ignorando-se as contradições de um país que tem nos estádios a projeção de seu estilo de vida consumista; e da capacidade de mobilização de um movimento que clamava por uma liberdade que jamais existiria em um ambiente que prende a todos na imobilidade urbana. Gritos de uma “microfonia democrática”.
A resposta do Governo veio na forma percussiva do “choque”. O resultado todos conhecemos. A repercussão nas redes sociais e a vitimização direta da mídia nos debates mudaram o tom e o “povo” tomou as ruas ao longo da última semana.

O “movimento”
Não há movimentos sem reflexos estruturais. Um movimento com essa dimensão terá seus reflexos. Mas, quais? Por mais louvável que seja a consciência cívica despertada, é preocupante, todavia, o tom supostamente “a-político” de um movimento que só o é porque é “político”. A crise de representação provocada pela falta de “política” na política, em razão da colonização econômica que conduz o agir estratégico da maioria dos partidos, especialmente os da base do Governo, provoca reações de desconfiança e apatia. Partidos, inclusive com longo histórico de reivindicações, não são bem vindos em um “movimento” que clama por valores republicanos e eficiência administrativa. Mas não há como fugir da política em uma sociedade democrática, a não ser que ela deixe, justamente, de ser democrática. Não podemos admitir que a pauta de um movimento democrático seja colonizada por uma forma de política não democrática. A não percepção deste paradoxo dá margem aos “heróis republicanos”. Logo seus rostos estarão na web.

As bandeiras do “movimento”
It´s not about 20 cents, of course. Todavia, há muitas versões. Eu mesmo propus uma pauta na tentativa de contribuir para uma tradução democrática do “movimento”, mas a "face" mais observada, embora legítima quanto aos princípios republicanos, peca em muitas das formas de implementação. Em um dos vídeos mais vistos na web, sugere-se que as reivindicações possuem “cinco causas” diretas. Ainda que possuam um pano de fundo legítimo, as “causas” são proposições de combate à corrupção que estão longe de ser, ao contrário do que afirma o grupo, “objetivas”, “consensuais” e sem “cunho ideológico”. Revelam um estado policialesco, que amplia o caráter repressor de políticas criminais através do endurecimento do direito penal. Uma tradução democrática do movimento se faz necessária, deve caminhar na direção de um aprimoramento institucional, clamar pelo fim de privilégios inconstitucionais e, especialmente, pelo funcionamento da política enquanto “política”. E isso inclui, sim, partidos. Por pior que sejam, serão sempre melhores que os “super-heróis” facistas.

A repressão
Por mais desproporcional que sejam alguns atos de vandalismo, o Estado não pode reprimir o direito de manifestação democrática como se a massa fosse um corpo dotado de “responsabilidade coletiva”. Atos de vandalismo ocorrerão, seja pela falta de educação, seja pelo excesso de ideologização dos movimentos. Mas o Estado é profissional. Possui – ou deveria possuir – um corpo policial treinado para lidar com a massa, separando manifestantes e imprensa, de grupos que exigem uma resposta proporcional. O que se viu em Salvador na quinta (20/06/2013) foi uma resposta à própria democracia, em nome de interesses dos mais escusos, e com o objetivo último de reprimir definitivamente futuras manifestações. Revela, dentre outras coisas, um equívoco na própria estratégia de amenizar os protestos.

A mídia
Não desafiem a nossa inteligência e ao poder informativo das redes sociais. As imagens no Youtube e no Facebook conseguem ser mais eloquentes que as linhas editoriais das TV´s brasileiras, determinadas por interesses que vão desde às relações comerciais que giram em torno da Copa das Confederações, ao sensacionalismo midiático em busca de audiência. A cobertura das manifestações em Salvador foi deprimente. Blogs do LeMonde traziam informações mais fidedignas que a mídia televisiva brasileira. Ficamos entregues a informações truncadas das redes sociais.

O silêncio eloquente dos governantes
A resposta precisa ser política, na sua versão mais autêntica de política. Se algumas bandeiras do movimento preocupam, se atos de vandalismo preocupam, mais preocupante ainda é o silêncio da política. Traduzir as reivindicações, limpando o “som” dessa microfonia, é papel da política institucional, especialmente quando não há interlocutores definidos. Por enquanto, o que se ouve é a “percussão” das forças policiais. Partidos políticos, se estão sendo excluídos das reivindicações, mesmo sendo equivocada tal atitude, é necessário assumir o caráter apartidário das manifestações e propor uma agenda política positiva. A política precisa demonstrar a capacidade reflexiva de traduzir um movimento complexo, plural e com identidade difusa, mas que traz reivindicações. Baixar tarifas não representa uma alteração estrutural do modo de funcionamento da política, apenas um “cala boca” que, como vimos, não foi uma medida eficiente.


Alternativas
Em uma palavra, política.
O Poder Legislativo da União precisa, urgentemente, suspender a votação da PEC 37. Não importa se somos a favor ou contra às possibilidades investigatórias do Ministério Público, pois qualquer resposta que advenha dessa votação não será democrática. É necessário ampliar o debate, situando-o em um ambiente democrático. Precisa acelerar os debates em torno da presença de Feliciano na Presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, pois não é possível que, em meio à instabilidade institucional que vivemos, a Comissão cometa o despautério de aprovar a “cura gay” na contramão de uma percepção global de direitos humanos. Precisa acelerar o desfecho sobre o afastamento dos condenados no Mensalão. Se não é possível afastá-los de imediato, que sejam retirados da Comissão de Constituição e Justiça através de decisões dos partidos políticos que indicam os membros. Precisam abrir a caixa preta de seus custos e iniciar o debate em torno da redução de cargos comissionados, verbas parlamentares e custos operacionais.
O Poder Executivo da União precisa anunciar de imediato ampliação das verbas em Saúde e Educação, através de propostas de revisão orçamentária que retirem verbas de publicidade e custos administrativos. Redução de cargos comissionados, custos com viagens e hospedagens, corte de veículos oficiais. Gostam tanto de medidas provisórias. Está na hora de utilizá-las em nome de um choque de gestão. Precisa abrir a “caixa-preta” da “copa”. Criar uma comissão interinstitucional, sem a presença de Pelé ou Ronaldo “o fenômeno”, para acompanhamento das contas e das PPP´s, informando à sociedade os eventuais desvios e estimulando o processamento dos responsáveis. Justificar os possíveis ganhos com a Copa, quantificá-los, sustentar a racionalidade de suas decisões políticas. Tomar algumas medidas que sejam contrárias aos interesses da Fifa em nome da soberania. Do acarajé na Fonte Nova, ao cerco segregacionista ao redor dos estádios. Sinalizar alternativas para o assistencialismo populista. Não há política democrática sem exposição e assunção de responsabilidades.
Os Governos Estaduais precisam baixar a guarda da polícia. Separar a resposta e proteção ao patrimônio, do “suposto” direito à ordem “em si”. Abrir a caixa preta dos custos dos transportes públicos sob sua responsabilidade. Criar comissões interinstitucionais para avaliar dados e propor alternativas de custeio. Reduzir gastos com publicidade. Ampliar gastos em saúde e educação.
Os Governos Municipais precisam fazer o mesmo. Criar suas comissões para abrir as “planilhas” de custeio do transporte público, especialmente quanto à regularidade e lucratividade das empresas de transporte. Precisa cancelar os feriados em dia de jogos, pois temos mais o que fazer. Debater mobilidade urbana. Convocar a sociedade, através de entidades de diferentes setores. Abrir o debate e parar de tapar os buracos das ruas em pleno horário de “rush”.

Cortes, abertura das contas, alternativas orçamentárias para investimento em saúde, educação, mobilidade urbana, choque de gestão administrativa. Isso é uma resposta política para um movimento “político”. Um caminho para resgatar a dignidade das instituições democráticas, reduzir manifestações violentas e vivenciar modificações estruturais que nos distanciem de alternativas totalitárias.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Os sons de uma microfonia democrática

Qual o “tom” da nossa democracia? Entre as “traves” e a “espada”, a verdadeira face da democracia brasileira se revela. Gabamo-nos por sermos os mais rápidos e transparentes nesta democracia fast food do sufrágio universal e esquecemos a face sombria de uma “sociedade” imatura que, em meio à colheita tardia do regime de opressão, é atropelada por “primaveras” que jamais “verão” o seu apogeu.

De um lado, os votos de uma maioria em grande parte colonizada por políticas assistencialistas. De outro, o esclarecimento de minorias traídas em seu projeto socialista. No centro, ainda é possível ver o jogo, especialmente se em campo estiver Xavi e Iniesta. A maioria se mobiliza em direção às agências da Caixa a fim de garantir sua mesada, enquanto as minorias esclarecidas tomam as ruas para protestar pelo aumento das passagens de ônibus. Perto das quatro, o centro se prepara para ver o jogo com canjica e bolo de fubá. Histeria, gritos de guerra e o silêncio eloquente da “caxirola”.

Fonte globo.com
As três notas dão o tom e ressoam no “acorde” de um governo que se esconde em suas políticas de pão, repressão e circo. Para a maioria histérica, o “sopro” assistencialista. Para as minorias esclarecidas, a “percussão” das tropas de choque. Para o centro que acredita entender de futebol, o “coro” de uma estabilidade tupiniquim baixado na Apple Store. De longe, privilegiados assistem o espetáculo em seus “bancos” cativos.

Fonte: redebrasilvirtual.com.br

Uma democracia que se preze não se legitima apenas pelo voto. Democracia é uma forma de “ser” da política de uma sociedade. Não há democracia sem um povo educado, capaz não apenas de compreender as informações necessárias para a tomada sempre arriscada de decisões políticas, mas também a importância em si do livre fluxo dessas informações “dissonantes”. Exige instituições transparentes que tomem decisões cientes de que a legitimidade política das escolhas não se resume ao exercício do poder por uma autoridade competente. Requer Imprensa livre, que não apenas tenha o direito de dizer o que quer, mas também o dever de dizer o que não quer. Uma polícia consciente de que a “ordem” não será sinônima de um discutível “progresso”. Uma economia que garanta as condições materiais para o exercício da cidadania, e não meros financiamentos que retardem a inevitável exclusão. Um direito capaz de estabilizar conquistas e que, de modo autônomo, imponha-se diante da política. Uma política na qual os partidos assumam seus lugares e que o “polegar” de suas bandeiras ideológicas tragam mais possibilidades que o “like” do Facebook.
Fonte: gazetadopovo.com.br

Os últimos acontecimentos no Brasil mostram a imaturidade de nossa democracia. Alguns foram “às ruas” pelo medo de perder a bolsa, sem perceber que são as suas cidadanias que são o alvo da barganha. No estádio, vaiaram a Presidente não porque o governo resolveu gastar 1,6 bilhões em um estádio de futebol que só verá craques no nome, mas porque a alta da inflação e o “pibinho” podem prejudicar a viagem para Miami no final do ano. Para completar, o único movimento politicamente situado busca o “passe livre” em cidades onde já não é mais possível andar.


Enquanto isso, perde-se o macro. Seguimos sem “política”, sem “direitos”, sem “educação”, comprando a inclusão de cidadãos com uma falsa integração econômica e retaliando com truculência retalhos de manifestações. Nessa democracia de R$ 1,99, somos condenados a um arranjo pobre e desafinado. Dos gritos, ouve-se apenas o ruído estridente da nossa “microfonia”.

domingo, 28 de abril de 2013



PEC 33 - Do sonho feliz de uma jurisdição à mítica realidade “jabuticaba”: porque és o avesso, do avesso, do avesso, do avesso.
A proposta de Ementa Constitucional que tramita no Congresso e que, recentemente, foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça revela o desajuste entre os nossos sistemas político e jurídico. Seu objetivo é, em síntese e supostamente, controlar politicamente decisões do STF que tenham extrapolado os limites da jurisdição e invadido a esfera do poder Legislativo, especialmente no tocante às súmulas e decisões vinculantes. Boa parte das análises e críticas que vem sendo feitas ao projeto, por sua vez, põe pelo avesso uma realidade já distorcida e mantém a realidade mitológica do constitucionalismo brasileiro.
O equívoco das premissas e o primeiro avesso
Acredita-se que a jurisdição deveria ser a “boca da constituição”, como se o modelo concebido por Montesquieu tivesse sido, algum dia, viável e efetivamente instaurado. Esse mito caiu por terra muito antes de pensarmos em jurisdição constitucional e ainda no apogeu das codificações e sob o império do “The model of rules”. O sec. XIX, portanto, já havia acordado para a incontornável criatividade da jurisdição, não sendo possível ao político programar o direito prevendo todas as possibilidades de sua aplicação. Quando a questão da jurisdição constitucional é acirrada no sec. XX, o grande problema já não girava em torno do “como” julgar “sem criar”, mas sim de “quem” ficaria a cargo o julgamento criativo, ponto central, por exemplo, do debate Schmidt-Kelsen. A questão é mais complexa e não pode ser observada, exclusivamente, através de critérios de “decisão”.
O equívoco do Judiciário e o segundo avesso
A questão do “como” julgar retornará no cenário do pós-guerra, mas nenhuma de suas versões (tópicas, hermenêuticas, estruturantes, discursivas, etc.) retomou o mito de que a aplicação do direito seria uma mera “operação” de adjudicação. E, justamente por terem abandonado a crença em fadas, duendes e gnomos, o constitucionalismo do pós-guerra continuaria, mesmo em tempos de dirigismo, fortemente dependente da regulamentação legislativa (inclusive o do “nosso” Canotilho). Nos locais em que o sistema político (Legislativo) conduziu os rumos da leitura reflexiva da constituição, a carga criativa da jurisdição constitucional não representou um grande problema (ao menos para a estabilidade democrática desses Estados, já que as teorias do direito e da constituição mantiveram viva essa questão), sendo legitimada pela ausência de seletividade das demandas e certo pudor político. O grande problema é que, no Brasil, o sistema político abriu mão do protagonismo nos debates da esfera pública, escondendo-se na relação fisiologista com o Poder Executivo e no caráter simbólico da Constitucionalização de 1988, que vendia a ideia de que todos já possuíam todos os direitos que precisavam. Uma espécie de fim da história política que, a partir de então, aguardava apenas a sua realização. Por muito tempo, essa função simbólica foi responsável por postergar demandas e irritações nos sistemas político e jurídico, mas, junto com o seu paulatino esgotamento, edificar-se-ia no Brasil um senso comum teórico que, desvirtuando matrizes do Constitucionalismo europeu, oferece soluções metodológicas “mágicas” que legitimariam o ativismo do Judiciário. Com princípios, dignidade da pessoa humana e proporcionalidade já seria possível prender e soltar, dar e receber. Já não se sabia mais o que era fruto de uma criatividade inexorável ou de um ativismo antidemocrático.
O equívoco da política e o terceiro avesso
O cenário ativista, não só do STF, mas do Judiciário como um todo, poderia ter sido um sinal para a política brasileira reagir. Para, finalmente, deixarmos de acreditar que os princípios e os programas constitucionais seriam o “fim” da política e que, a partir de então, era necessário dizer o que diz a Constituição. Entretanto, os exemplos de inércia são muitos (greve dos servidores públicos, liberdades civis dos homossexuais, reforma política, regulamentação do sistema financeiro, etc.) e a relação temática com as decisões ativistas do STF não é mera coincidência. É que o ativismo da jurisdição passava a servir de válvula de escape para uma nova modalidade de constitucionalização simbólica, agora exercida por uma jurisdição também simbólica. As decisões ativistas do Judiciário, especialmente do STF, estabilizavam conflitos de índole moral e religiosa, sem que houvesse o comprometimento de um poder político apático e descompromissado, e encobriam a incapacidade de nossa economia/política concretizar direitos sociais através de decisões que consideravam, exclusivamente, critérios de microjustiça. O STF fazia o trabalho “sujo” da política, limpava-o sob o discurso da neutralidade constitucional e, por outro lado, não comprometia a política macroeconômica e o stablishment. Mas, como os limites desse “mandato” tácito são muito tênues, o exercício desse poder de programação em larga escala passará a incomodar determinados segmentos da política e, neste caso, também não teremos coincidências: a “bancada homofóbica” e as facções prejudicadas no julgamento do mensalão serão os insurgentes. Estamos prestes a cometer o quarto erro.
A destruição da diferença e quarto avesso
Os desencontros entre os sistemas político e jurídico não serão resolvidos com a dissolução dessa diferença que é fundamental à democracia. Direito é direito, política é política e a Constituição dissolve os paradoxos. Se o método não tem permitido que o direito seja direito – e, por outro lado, permite que ele seja política – a solução não está em, ao reconhecer essa “corrupção”, tomar atribuições jurídicas da Corte para, com isso, trazer de volta o político que se encontra ali escamoteado. Neste caso, “ladrão que rouba ladrão” (metaforicamente falando, claro) não terá “cem anos de perdão”. Teremos perdido as condições de uma sociedade democrática, na qual o sistema político programa o jurídico a partir de procedimentos e diálogos democráticos, enquanto o jurídico resolve tão somente os conflitos que batem à sua porta, considerando, necessariamente, os parâmetros de um direito democrático e criando apenas o necessário para manter a integridade desse sistema. É na busca da integridade e(ou) autonomia do direito que seguem as principais correntes teóricas contemporâneas que acreditam na jurisdição, seja de índole hermenêutica (Dworkin, Streck), sistêmica (Neves, Campilongo, Schwartz) ou discursiva (Habermas, Alexy, Häberle, Catoni). A PEC 33, na maioria de suas disposições, tem, todavia, o objetivo de roubar o jurídico para, com isso, retomar a política que foi apropriada pelo direito.  Não podemos perder de vista que o direito se apropriou de uma política abandonada pelo “político”. Cabe à política fazer política. Se as súmulas incomodam, legislem. Se efeito erga omnes da jurisdição constitucional não é politicamente adequado, reformem as leis que regulam a jurisdição e emendem a Constituição. Votem o casamento gay, digam sim ou não. Saiam do armário. Promovam uma reforma política que não seja eleitoreira, a exemplo da tentativa de alterar o regime de criação de partidos políticos quando já sabemos quem serão os candidatos. Democratizem o debate público e legitimem suas decisões. Cumpram o seu papel, caso contrário, estarão colocando pelo avesso aquilo que já estava pelo avesso, apenas desnudando a mítica realidade de uma “jurisdição constitucional jabuticaba”.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

CONCURSOS PÚBLICOS E FILOSOFIA DO DIREITO: colonização do pensamento crítico ou "pegadinha do malandro"?


Quando o CNJ determinou a inclusão da temática jusfilosófica nos concursos públicos para a magistratura, pressentia que seríamos atropelados pela "colonização" dos standards. A própria orientação do CNJ sugeria uma percepção decisionista e solipsista da atuação do magistrado. Essa semana estava vendo a prova para Defensor Público do Paraná 2012 e, de fato, estamos próximos do caos. Na questão de Kelsen, o quesito apontado como correto pela FCC (claro!) faz uma pegadinha ao omitir que o ato ao qual se refere é um "ato de vontade". Qual o sentido das pegadinhas em provas de concurso? Deixemos isso para Sérgio Malandro. Na questão de filosofia, a prova considera que a "contribuição da Filosofia para o exercício do ser Defensor Público que somente se realiza sendo Defensor Público" é que ela, a filosofia, "torna livre no Defensor o seu Ser, a necessidade interna de resgate de sua essência mais própria, de modo a conferir a essa essência a sua dignidade de ser Defensor Público". Foi outra pegadinha? Quem disse isso? Algum professor em algum curso preparatório oferecido pela Associação de Defensores ou algo que o valha? Mas, para tornar ainda mais dramática a vida do sujeito que é obrigado a tentar acertar essas coisas, na prova subjetiva havia uma questão sobre "hermenêutica" (claro, afinal, todos os problemas se resolvem com ela). Não consegui o quesito, mas o espelho de resposta exigia que o candidato enfrentasse os seguintes temas:
"1. Explicação quanto à mudança de paradigma e ruptura na interpretação — filosofia da consciência para filosofia da linguagem. 1.1 Correntes Filosóficas: Racionalismo / Empirismo / Fenomenologia / Realismo / Filosofia da linguagem. 1.2 Explicação quanto as efeitos/influência dessa ou alguma dessas correntes na hermenêutica jurídica. 2. Apresentação das implicações na interpretação e aplicação do direito. 2.1 Correntes hermenêuticas: Hermenêutica filosófica; principais concepções; Hermenêutica Epistemológica; Efeitos na interpretação do Direito. 2.2 Efeitos da Hermenêutica quanto à noção de interpretação, já que não se busca reconstituir o efeito da norma, mas dar sentido ao texto a partir da pré-compreensão, da história de cada intérprete. 3 Citar exemplo [(art. 1.511 CC, art. 5º, CF, Art. 212 CPP)] Verificar cada caso. Explicitar a norma jurídica e os efeitos da interpretação."
Me abstenho de criticar o conteúdo pois não conheço o quesito, mas estranho alguns determinismos, a exemplo de uma suposta relação necessária entre "hermenêutica filosófica" e "história de cada intérprete". Mas, o mais impressionante é que o candidato teria apenas 25 linhas para responder. Será que nessa hora Sérgio Malandro aparecia dizendo "gluglu-dada"? Vida dura essa de vocês concurseiros.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Mensalão: o julgamento de quem julga e o papel da Universidade


Não tenho sido um expectador assíduo das sessões de julgamento do “mensalão”, confesso. I’m guilty! Tenho visto notas de blogs, crônicas e editoriais sobre o assunto, além da síntese televisiva de alguns dos votos. É "passada" a hora de irmos a fundo. Mas a miopia também desperta, ao menos exige um cuidado que nos faz perceber o entorno por outras perspectivas. Não falo do “julgar aqueles que nos julgam” – ao menos neste texto – mas do refletir sobre o modo como estamos, na nossa critica cotidiana, julgando estes que nos julgam.
O caso do mensalão é emblemático. Desperta o interesse de muitos, embora não haja ali nenhum crime cinematográfico, típico das páginas policialescas dos pasquins de quinta. Talvez a politicagem seja um ingrediente pitoresco, mas, de qualquer forma, o interesse por sua dimensão política será sempre salutar. Comunidade, imprensa e acadêmicos com a palavra. Academia? Onde estão os juristas? Eles ainda não chegaram. Então, comecemos pela comunidade. Nada melhor que o bar da esquina para ouvir o que “o povo” pensa. E Platão que nos perdoe. O fato é que o povo já condenou. O povo sempre condenará. O  julgamento popular tende a pedradas. Geni "é feita para apanhar, feita pra cuspir". Joga pedra na Geni. O povo não julga “o fato", mas pessoas que "são" por aquilo que a mídia entendeu ter sido o fato que os tornaram enquanto tais. Isso não quer dizer que o povo não importe. Apenas que a relação entre opinião pública e direito é complexa, exige um espaço público capaz de produzir um mínimo de reflexão crítica.
Chamemos a mídia. Liguemos a TV. O sistema jurídico não conseguiu garantir as condições necessárias à autonomia dos órgãos de imprensa, de modo que a liberdade deixasse de ser o direito de dizer o que se quer e passasse a ser, também, o dever de dizer aquilo que não se quer publicar. De qualquer forma, é inegável que, no caso do mensalão, a "corrupção da corrupção" permitiu que o sistema funcionasse e, de um modo geral, produzisse coberturas com alguma integridade. Mas, como a mídia vem julgando o processo do mensalão? Eis o problema. A mídia não julga o processo, apenas o seu resultado. O resultado é a notícia. O processo não passa de expectativa, de novela, de cenas que antecedem o verdadeiro capítulo. Isso também não quer dizer que o resultado não importe e que ele não deva ser noticia. Talvez seja apenas esse o papel da midia. O fato é que a relação entre o processo e o resultado que ele deve(ria) ter é também complexo e exige, de igual modo, condições institucionais capazes de produzir um resultado criticamente controlado. A mídia não conseguirá reduzir essa complexidade, embora alguns veículos tenham se esforçado para isso muito mais do que a própria academia.
Chamemos os juristas. Eles já chegaram? O papel da Universidade é, dentre outros, enfrentar a complexidade existente entre a comunidade, o direito, o caso, o processo e o seu resultado. Urbanizar a província e possibilitar em todos os espaços as condições criticas de pressão e controle reflexivo do discurso judicial. Mas quem são os juristas? Será o advogado que dá entrevistas nos programas matinais alertando para os direitos de seus futuros clientes? O Juiz que condena com base na dignidade da pessoa humana?  O Promotor que luta contra a impunidade e tenta "orientar o Alcapone"? Não, definitivamente. O advogado não possui as condições estruturais para exercer um controle critico do discurso judiciário com um grau de autonomia aceitável, muito menos exercer o papel "especulativo" do sistema, bloqueado pelo seu compromisso ético-estratégico. O Juiz, muito menos. Ele é tradutor, mais espelho do que espelhado e nao queremos "a sua boa educação".  O Ministério Público, embora com possibilidades mais amplas, não pode ser o "dono" de seus litígios. Apenas a Universidade poderia reunir as condições sistêmicas para exercer o papel critico-reflexivo da distância entre aquilo que seria entendido por direito e aquilo que ele deve ser em um determinado caso concreto.
Pois, então, chamemos a Universidade! Onde ela está? Está  pulverizada em mais de 1200 cursos espalhados pelo Brasil, que repetem de forma acéfala os prêt-à-porter que cairão nas próximas provas de concurso público. Recheada de advogados, juízes e promotores "dadores de aula" que não exercem a função critica-especulativa do sistema.  Está nos quadros que, mesmo "atômicos", continuam trazendo o "conceito" no item 1. Nos livros "resumidos", posto que já não bastavam os "esquematizados". Na cópia dos cadernos ou nos grupos que digitam as aulas. "That is the question". Somente novas possibilidades estruturais permitirão que as Universidades exerçam o seu papel critico-reflexivo de controle e urbanização da complexidade do fenômeno jurídico. Sem salários justos e carreira equilibrada, maior número de professores com dedicação exclusiva e condições de trabalho dignas, a Universidade não poderá exercer suas funçōes. Sem ela, não há democracia.  Sem ela, continuaremos precisando de heróis. De "homens morcego" ou de "mulheres maravilha". 

domingo, 12 de fevereiro de 2012

A GREVE DA PM/BA E A IMPOTÊNCIA DO DIREITO: como endurecer sem perder a ternura?

Uma rápida reflexão sobre o fenômeno da greve de militares, sem respaldo constitucional, revela a incapacidade do direito diante de situações que colocam em xeque sua autonomia. Não me refiro, apenas, à incapacidade de “observação” do fenômeno a partir das “atuais” categorias dogmáticas, que não assimilam a interação entre validade, legitimidade e eficácia, mas também a impotência do sistema jurídico que, em situações de excepcionalidade, não consegue fazer valer a sua autonomia. Uma democracia só é viável se o sistema jurídico possuir uma autonomia conglobante. Uma autonomia que, por um lado, deveria prevalecer diante da corrupção do sistema econômico que impõe um modelo de austeridade fiscal e produz a justificativa “jurídica” para o não pagamento de soldos dignos e de gratificações previstas em lei. Uma autonomia que, por outro lado, consiga impor os limites constitucionais ao direito de greve, sem prejuízo do direito de rediscutir esses limites e, também, assimilar com integridade (e responsabilidade) eventuais atos de desobediência civil gerados pela falta de participação democrática no processo de revisão política do direito.
A greve da PM/BA foi o retrato desses desencontros. O que queremos? Reformas gestadas democraticamente, onde as regras do jogo devem ser respeitadas, inclusive aquelas que regem as modificações do próprio jogo democrático? Ou revoluções, que triplicam o número de mortes em um Estado que já possui no cotidiano índices dignos de uma “guerra civil”? São muitos os desencontros desse “direito torto”.

DESCUMPRIMENTO DO DIREITO DOS MILITARES – Os militares da polícia baiana possuem há muito direitos assegurados em lei que não são efetivados. Com um soldo deprimente que, segundo a nossa corte constitucional, não estaria sujeito sequer ao limite do salário mínimo, também não recebem a chamada GAP, uma gratificação escalonada que leva em conta a natureza, o risco e o desempenho do policial. Também é sabido que os policiais não possuem treinamento condizente ao risco de sua atividade, bem como armamento e equipamentos de segurança adequados. O Poder Executivo argumenta que o pagamento da GAP vem sendo impedido pelos limites orçamentários impostos aos entes federativos. A existência de limites está prevista na Constituição Federal (art. 169), modificada em parte pela Emenda 19, enquanto que o percentual está previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Comp. 101/00) e, de fato, vem sendo imposta aos entes federativos como um “mantra”. Mas isso não exime o Executivo de sua responsabilidade política. Convém lembrar, apenas como exemplo, que no mesmo grupo de despesas da GAP estão os gastos do Estado com as funções e cargos comissionados, cuja existência foge, sem nenhuma razão para tanto, à regra constitucional do ingresso via concurso público e onera demasiadamente os gastos com pessoal. Por que se quer cumprir uma Lei Complementar quando os entes federativos não cumprem sequer a Constituição? Por que não eliminar cargos comissionados e dar efetividade à Lei Estadual que prevê a GAP, sem descumprir os limites da responsabilidade fiscal? E ainda que não fosse o caso, por que cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal e deixar de cumprir a Lei Estadual? No Brasil temos mais de 1200 cursos de Direito, mas quantos professores de Direito Constitucional e Financeiro estão pensando nisto?

SEGURANÇA PÚBLICA E SOCIEDADE – A “questão” da Segurança Pública não é um “problema” de Segurança Pública. Todavia, os diversos setores da sociedade brasileira, salvo aqueles que integram a resistência da criminologia crítica, mesmo quando vão fundo, não vão no “próprio fundo”. A imprensa vê a segurança pública como um palco de imagens espetaculares, especialmente os programas sensacionalistas. No dia em que o caos se instaurou em Salvador, um jornal de TV fechada (!) gastou mais tempo noticiando o assassinato passional de uma Procuradora por seu marido do que cobrindo o movimento grevista de Salvador. O mesmo ocorreu com cobertura da morte de Withney Houston, uma figura que não possui nenhuma importância para a sociedade brasileira. O público perde espaço para o privado e o que importa é o espetáculo do mocinho – que, por razões corporativas abre espaço para a imprensa – contra o bandido, que, em “um país sério, deveria estar morto” (sic!). Como se já não o fosse. A comunidade, desprovida de qualquer senso crítico, despolitizada, permanece alienada diante da “publicização do privado”. E quem já achava o BBB deprimente, experimentem o “Mulheres Ricas”. O mercado exige uma segurança pública a serviço da propriedade e da paz em regiões “nobres”, mas no “avesso do gueto” as “grades do condomínio já se transformam em prisão”. O Estado, por sua vez, mantém os setores de segurança pública no calabouço. Não há transformações efetivas na área de inteligência da polícia, tampouco na “inteligência dos policiais” e muito menos no verdadeiro “problema” da “segurança pública”. Um soldado, que expõe sua vida – e a vida dos outros! – ganha menos que um técnico da burocracia estatal. Um Coronel ganha menos que um ascensorista do Senado. Que segurança pública queremos?

DESOBEDIÊNCIA CIVIL E AGIR ESTRATÉGICO – Se o direito é impotente, a questão se torna exclusivamente política e, neste campo, o agir estratégico é o que impera. “Farinha pouca, nosso pirão primeiro”. Já que o direito não garantiu aquilo que ele mesmo disse que ia garantir, mostrando-se impotente diante dessa degradação, é o poder político sem regras e sem escrúpulos que irá imperar. É evidente que atos de desobediência civil em resposta à leniência do poder público é justificável. Diria mais: mesmo sem termos produzido categorias jurídicas capazes de refletir questões como essa, é “juridicamente” justificável. O que não é justificável é a falta de escrúpulos e o clima de terror que se instalou em Salvador nos dias de greve. Nada justificará as mortes decorrentes do clima de insegurança, nem mesmo homens encapuzados com armas em punho para garantir o bloqueio de ruas e avenidas com veículos “roubados”. Ainda que o agir estratégico passe a ser a única alternativa diante da ausência de racionalidade dos sistemas sociais, sempre haverá limites. Se estamos lutando por “direitos”, os limites da luta não podem deixar de ser limites “jurídicos”. A não ser que queiramos abrir mão desse direito “imprestável” e fazer a revolução. Por mais simpatia que tenha aos movimentos sociais “revolucionários”, não vejo na revolução uma saída inteligente. E é curioso notar que, descumprindo o direito, o próprio movimento o reivindica como mecanismo de estabilização das conquistas, o que já os coloca distantes de um ideal revolucionário. Se for possível sair e entrar, a qualquer momento, no discurso jurídico, nunca saberemos a hora em que deveremos ou não confiar a ele a estabilidade de uma democracia cidadã. Reforçar a autonomia e a integridade do direito é a alternativa para uma necessária “reforma” democrática das nossas instituições, pois é a única maneira de “endurecermos” sem que percamos a “ternura”.